terça-feira, fevereiro 28, 2006

33) Ondas telegráficas e telepáticas

Algumas profissões, ao mesmo tempo em que trazem sustento à pessoa, provocam uma série de enfermidades... há muitos exemplos, principalmente as mais recentes, conhecidas como LER ou DORT, compreendendo lesões por movimentos repetitivos.

Rafael Cunto foi ferroviário, tendo passado por diversas funções, iniciando como guarda-cancela. Nessa função tinha que passar noites e mais noites sozinho, aguardando o trem chegar, para mudar a linha ao sinalizar na cancela. Às vezes, ia cair no sono e acordava assustado pensando que o trem estava chegando: “O trem chegou! O trem chegou!” – gritava uma voz dentro de sua cabeça, impedindo-o de dormir.

"Aí vem o trem! Lá vem o trem!" Uma voz soando dentro da cabeça impedia que Rafael dormisse. Tinha que mudar a chave da linha.

Como era um sujeito inteligente e esforçado, aprendeu a telegrafar e logo mudou de serviço, passando a telegrafista. O telégrafo foi o e-mail do passado. O mundo começou a ficar menor com a invenção de Samuel Morse, transmitindo e recebendo mensagens, ligando os lugares mais isolados.

O tempo foi passando, Rafael trabalhou durante anos, até que se aposentou. Havia juntado algum dinheiro, que passou a emprestar a juros. Ele era um homem bom, desde que as coisas não envolvessem o seu dinheiro. Quando seu dinheirinho estava “em perigo”, ficava furioso.

Certa ocasião, precisei de algum dinheiro e recorri ao Rafael, que prontamente me atendeu. Foi então que o conheci mais de perto, conforme conto aqui. Ele me chamava de Chicão.

Algumas pessoas contam carneirinhos para tentar dormir

Como havia sido guarda-cancela, Rafael teve seu sono prejudicado por toda sua vida: assim que começava dormir, acordava assustado com a danada voz em sua cabeça, gritando: “O trem chegou! O trem chegou!”.

Com isto, seu sono resumia-se a uns poucos minutos em cada noite. Cinco minutos dormindo e uma hora acordado. À insônia somava-se sua incontinência urinária e uma voz gritando na cabeça... não dá mesmo para dormir.

O sono costumava fugir do Rafael.

Nas noites mais quentes, ele ficava sentado na cozinha de sua casa, passando as horas brincando de telegrafista. Tinha arrumado uma antiga chave de telégrafo, com a qual ficava relembrando seu tempo de telegrafista: ponto, traço, ponto, traço... e Rafael ia compondo frases, pensamentos, expressando suas preocupações ou extravasando sua raiva:

- Eu fico a noite inteira telegrafando! – disse Rafael.

Eu sabia que as noites insones dele eram assim. Só não imaginava o poder do telégrafo do Rafael.

Ele havia emprestado um capital significativo para uma determinada pessoa, que estava dando trabalho para pagar tanto os juros quanto o próprio capital. Se o sono nunca havia sido fácil, com estas preocupações a insônia instalou-se por completo. Agora Rafael amanhecia sentado na cozinha, “telegrafando” sem parar:

- Eu não consigo dormir, então fico telegrafando: Fulano de Tal, caipora, lazarento, não me paga!!! – explicou.


"Fulano e Cicrano, lazarentos, não me pagam!" - esbravejava Rafael no telégrafo a noite inteirinha.

Fiquei pensando na birra dele, o dia todo andando atrás de seu cliente e a noite toda “telegrafando”. Fiquei pensando que aquelas ondas imaginárias do telégrafo dele poderiam até mesmo perturbar o sono daquele seu cliente.

Mas era sempre assim, quando ele ficava preocupado em receber algum dinheiro, quando tinha alguma dificuldade, perdia por completo o seu escasso sono e passava noites inteiras travando neuróticos monólogos com seu telégrafo a respeito de seus clientes mais problemáticos.

Uns meses depois, eu tive dificuldades em cumprir os compromissos com o Rafael. Passei a ter insônia. Ficava lembrando do danado a noite toda. Só então me recordei do telégrafo do Rafael, que deveria estar teclando a noite inteira: “Caipora do Chicão... não devolve meu dinheiro!”

Ele "telegrafava" de sua cozinha. Tinha apenas o teclado, a chave do telégrafo...

Pela intensidade da minha insônia, creio que estive na ponta dos dedos do telegrafista noturno Rafael durante um bom tempo, até que, finalmente, consegui cumprir com nosso negócio. Arre! Cada um com sua mania!

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