terça-feira, fevereiro 28, 2006

33) Ondas telegráficas e telepáticas

Algumas profissões, ao mesmo tempo em que trazem sustento à pessoa, provocam uma série de enfermidades... há muitos exemplos, principalmente as mais recentes, conhecidas como LER ou DORT, compreendendo lesões por movimentos repetitivos.

Rafael Cunto foi ferroviário, tendo passado por diversas funções, iniciando como guarda-cancela. Nessa função tinha que passar noites e mais noites sozinho, aguardando o trem chegar, para mudar a linha ao sinalizar na cancela. Às vezes, ia cair no sono e acordava assustado pensando que o trem estava chegando: “O trem chegou! O trem chegou!” – gritava uma voz dentro de sua cabeça, impedindo-o de dormir.

"Aí vem o trem! Lá vem o trem!" Uma voz soando dentro da cabeça impedia que Rafael dormisse. Tinha que mudar a chave da linha.

Como era um sujeito inteligente e esforçado, aprendeu a telegrafar e logo mudou de serviço, passando a telegrafista. O telégrafo foi o e-mail do passado. O mundo começou a ficar menor com a invenção de Samuel Morse, transmitindo e recebendo mensagens, ligando os lugares mais isolados.

O tempo foi passando, Rafael trabalhou durante anos, até que se aposentou. Havia juntado algum dinheiro, que passou a emprestar a juros. Ele era um homem bom, desde que as coisas não envolvessem o seu dinheiro. Quando seu dinheirinho estava “em perigo”, ficava furioso.

Certa ocasião, precisei de algum dinheiro e recorri ao Rafael, que prontamente me atendeu. Foi então que o conheci mais de perto, conforme conto aqui. Ele me chamava de Chicão.

Algumas pessoas contam carneirinhos para tentar dormir

Como havia sido guarda-cancela, Rafael teve seu sono prejudicado por toda sua vida: assim que começava dormir, acordava assustado com a danada voz em sua cabeça, gritando: “O trem chegou! O trem chegou!”.

Com isto, seu sono resumia-se a uns poucos minutos em cada noite. Cinco minutos dormindo e uma hora acordado. À insônia somava-se sua incontinência urinária e uma voz gritando na cabeça... não dá mesmo para dormir.

O sono costumava fugir do Rafael.

Nas noites mais quentes, ele ficava sentado na cozinha de sua casa, passando as horas brincando de telegrafista. Tinha arrumado uma antiga chave de telégrafo, com a qual ficava relembrando seu tempo de telegrafista: ponto, traço, ponto, traço... e Rafael ia compondo frases, pensamentos, expressando suas preocupações ou extravasando sua raiva:

- Eu fico a noite inteira telegrafando! – disse Rafael.

Eu sabia que as noites insones dele eram assim. Só não imaginava o poder do telégrafo do Rafael.

Ele havia emprestado um capital significativo para uma determinada pessoa, que estava dando trabalho para pagar tanto os juros quanto o próprio capital. Se o sono nunca havia sido fácil, com estas preocupações a insônia instalou-se por completo. Agora Rafael amanhecia sentado na cozinha, “telegrafando” sem parar:

- Eu não consigo dormir, então fico telegrafando: Fulano de Tal, caipora, lazarento, não me paga!!! – explicou.


"Fulano e Cicrano, lazarentos, não me pagam!" - esbravejava Rafael no telégrafo a noite inteirinha.

Fiquei pensando na birra dele, o dia todo andando atrás de seu cliente e a noite toda “telegrafando”. Fiquei pensando que aquelas ondas imaginárias do telégrafo dele poderiam até mesmo perturbar o sono daquele seu cliente.

Mas era sempre assim, quando ele ficava preocupado em receber algum dinheiro, quando tinha alguma dificuldade, perdia por completo o seu escasso sono e passava noites inteiras travando neuróticos monólogos com seu telégrafo a respeito de seus clientes mais problemáticos.

Uns meses depois, eu tive dificuldades em cumprir os compromissos com o Rafael. Passei a ter insônia. Ficava lembrando do danado a noite toda. Só então me recordei do telégrafo do Rafael, que deveria estar teclando a noite inteira: “Caipora do Chicão... não devolve meu dinheiro!”

Ele "telegrafava" de sua cozinha. Tinha apenas o teclado, a chave do telégrafo...

Pela intensidade da minha insônia, creio que estive na ponta dos dedos do telegrafista noturno Rafael durante um bom tempo, até que, finalmente, consegui cumprir com nosso negócio. Arre! Cada um com sua mania!

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

32) Um caso complicado pra xuxu!

Xuxu ou chuchu? O vegetal “chuchu” é escrito é escrito com “ch”, mas “xuxu” é uma gíria e significa “grande quantidade”.

Le Petit Écolier

Maintenant, je vais à l'école:
J'apprends chaque jour ma leçon.
Le sac qui pend à mon épaule
Dit que je suis un grand garçon.
Quand le maître parle, j'écoute.
Et je retiens ce qu'il me dit,
Il est content de moi, sans doute,
Car je vois bien qu'il me sourit.

No Brasil as coisas mudam o tempo todo. Sempre aparece um político querendo modificar as coisas e impor sua marca. O ginásio de Tatuí teve um monte de nomes... o “sobrenome”, Barão de Suruí não mudou, mas o “nome”... Ginásio do Estado, Instituto de Educação, Instituto de Educação Estadual, Escola Estadual de Primeiro e Segundo Graus... nem sei quantas vezes e nem vou tentar acertar todas.

Mas as mudanças de nome não são o pior. As mudanças nos sistemas educacionais, na massificação forçada do ensino, nas estratégias anti-evasão escolar e na política da progressão... alguns saem da escola sem aprender coisa alguma, mesmo tendo freqüentado todo o ensino fundamental (anteriormente denominado primeiro-grau, englobando o antigo grupo escolar e curso ginasial). Sabem até ler, mas não interpretam o texto... ou seja, lêem mas não sabem o que significa aquilo que leram. São analfabetos funcionais.

Um ex-aluno do antigo “Barão de Suruí”, por exemplo, saía do Científico, Clássico ou Normal para entrar nas melhores faculdades sem fazer cursinho. USP, ITA, UNICAMP... tudo era possível para os ex-alunos do "Barão". Nunca precisariam do tal "sistema de cotas" para alunos de escolas públicas... Alunos de escola pública eram os melhores!!!

A escola era "puxada", mas sobrava tempo para brincadeiras

A disciplina era rígida e faziam muitas exigências aos alunos, desde uniformes, cabelos, freqüência, aplicação nos estudos... não era fácil, mas aprendiam mais que nas escolas particulares de hoje.

Um dos professores que deixaram sua marca bem forte foi o seu Ciriaco, professor de francês. Seu Ciriaco, era, como todos os demais professores, exigente. Só que ele era especial, pois além de exigente era ranzinza e neurastênico. Ele era espanhol, nascido lá pelos lados dos Pirineus, quase na França e, com isto, embrulhava tudo para falar, misturando português, francês e o espanhol...

A mesa do professor ficava sobre um tablado, cerca de 20 cm mais alto que a classe, colocando-o em uma posição privilegiada, sendo possível observar aos alunos com mais facilidade. Parecia que o homem tinha um olho de lince... via tudo!

- Qu'est que ceci? - Qu'est que cela? - Zero pela leçon e arretire-se da classe! - seu Ciriaco passava a aula toda resmungando e distribuindo zeros pela "leçon"...

Era um homem bravo, mas bom. Ele tinha sido padre (ou quase foi padre) e largou tudo para casar. Ihhh! Como ele era exigente!!!! Eu tive que decorar essa poesia que está aí em cima para sua aula, isto no ano de 1964. Tinha porque tinha que saber “de cor”... taí, mais de quarenta anos e ainda não esqueci!

- Arrepito pela última vez, en français, le verbe avoir tiene la función auxiliaire! – dizia, mais ou menos assim, o seu Ciriaco.

Um belo dia, na aula, ele me chamou:

- Luciano, trazê votre cahier! – me chamava por uma parte do sobrenome, misturando francês com português.



Eu havia desenhado uma caveira com ossos cruzados na capa do caderno de francês, como o símbolo de piratas. O homem, quando viu aquilo, quase enlouqueceu:

- Qu’est que ceci? Zero pela leçon e arretire-se da classe! – determinou seu Ciriaco.

Enquanto saía da classe, cheguei a escutar o professor chamando o João Augusto:

- Trazê votre leçon!

Seu Ciriaco intimidava a criançada com seu falar enrolado e os pêlos nas narinas e nas orelhas. Parecia que tinha uma pequena aranha em cada orelha

Em poucos minutos João, que não havia feito a lição de casa, estava comigo fora da classe. Estávamos um pouco assustados, porque se o Juca Pato, o diretor, nos visse ali... aiaiai, suspensão na certa e problemas em casa. O diretor era ainda mais bravo que o professor... tão bravo que hoje, mais de quarenta anos depois, fiquei pensando se deveria ou não colocar seu apelido aqui (ai de quem o chamasse de Juca Pato!!!).

Mas o pátio ficou animado, a cada um que seu Ciriaco chamava, dava um zero “pela leçon” e mandava sair... parece que não fomos apenas nós dois que não fizemos a coisa do jeito que ele queria. No meu caso, o problema tinha sido a capa do caderno, mas se pedisse minha lição, o resultado seria o mesmo.

Naquele dia, no final das aulas, fomos embora bravos com o professor, que implicava com tudo.

- Ô Jão, vamos dar um jeito no seu Ciriaco? – perguntei ao João.

Meu sonho era um canivete suíço, como este. Tanto o meu quanto o do João eram canivetes simples

Eu e ele tivemos uma idéia para castigar seu Ciriaco: pegamos nossos canivetes, colhemos alguns chuchus e fomos “picar” chuchu na entrada da casa do professor, imaginando que ele escorregaria naquilo e ficaríamos uns dias sem sermos perturbados por ele.

Vegetal colhido para fazer o professor escorregar

Que coisa! Fiquei bastante indeciso em confessar isto. Não devido � possibilidade de machucar o professor, mas pela vergonha em admitir que tivemos essa idéia: picar chuchu para o professor escorregar... picar chuchu na porta do professor, que vergonha!!! Será que não havia alguma outra coisa um pouco melhor que esta para fazer???

Elementary, my dear Watson... It's pricked chayote!

Mas também não deve ter sido fácil para seu Ciriaco descobrir o que havia acontecido nos degraus de sua casa. Descobrir o que era aquela coisa toda picadinha...

Picadinho de chuchu!!! Ainda se fosse quiabo poderia ter uma pequena chance de derrubar o homem, mas chuchu!?!?!?

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

31) Cidade maravilhosa, viagem horrorosa

Quem me contou este caso foi o próprio protagonista, meu amigo Euchário Holtz - cujos comentários sobre a realidade estão fazendo bastante falta com o besteirol nacional. Ele adorava ir ao Rio de Janeiro. Sempre que possível passava lá uma temporada. Não ia lá apenas para ver as cariocas nas praias. Ia para relaxar olhando para o mar ou simplesmente indo a bares e restaurantes. Sentia-se rico, mais que rico, sentia-se milionário, principalmente quando tomava umas e outras.


Ele costumava relatar que, em um bar que freqüentava nas proximidades da praia de Copacabana, o barman fazia uma maravilhosa batida com whisky e sorvete de coco. Sabia que tinha uns outros ingredientes, mas desconhecia quais eram estes.

– É um frappé, mas um frappé que enlouquece! - costumava lembrar.

Assim, durante alguns anos, dava seus passeios por lá. Ia de ônibus, pois não viajava de avião. Não por medo de voar, já havia experimentado alguns vôos, mas temia sentir-se mal dentro do avião em uma manifestação da sua claustrofobia.

Com o passar dos anos, aumentavam as dificuldades para caminhar e, além disto, mantinha-se gordo e tinha algumas hérnias quase estrangulando. O remédio para as hérnias era a cirurgia, coisa que sempre tentou evitar e assim, para que não acontecesse algo inesperado, mandou fazer uns cintos especiais que lhe seguravam a barriga. Na verdade era mais um “suporte” ou “amparo” para aquela enorme protuberância abdominal, evitando que, ao andar ou apenas se movimentar, as hérnias não estrangulassem.

Se os movimentos ficaram difíceis, a vontade de ir ao Rio de Janeiro continuava firme e ia regularmente. Enfrentava o cansaço e o incômodo da viagem com bom humor, lembrando do tal frappé enlouquecedor.

Sua última viagem, no entanto, foi problemática, acontecendo um fato inusitado que merece ser registrado:

Foi a São Paulo e lá tomou um ônibus para o Rio. Seis horas de viagem! É um tempo razoavelmente grande para acomodar aquele corpanzil na pequena poltrona do ônibus.


Ônibus que fazia a viagem São Paulo - Rio

Mas a recompensa o aguardava no Rio: o tal frappé de whisky que enlouquecia!

Desta vez, porém, o destino não estava de brincadeira, pois logo depois da partida começaram uns movimentos estranhos em seu ventre. Movimentos internos, não era manifestação da hérnia, mas o que se movimentava lá queria sair... e tinha pressa!

Não deu para agüentar e foi ao toalete do ônibus para descarregar aquilo tudo! Mas havia um problema: o tamanho da porta do toalete!!! Não dava para passar naquele vão diminuto com aquela barriga enorme.

Mas a situação interna não podia esperar: ou entrava para evacuar no sanitário ou "aconteceria" nas calças! Para explicar bem como estava a situação, mais uns poucos minutos e a coisa iria acontecer ali mesmo, do lado de fora, na porta do toalete.

Tenta aqui, geme ali, aperta acolá... nada! Não conseguia entrar!

Força um pouco, geme e, de repente, o ônibus fez um movimento brusco para desviar de alguma coisa na estrada e vumpt... apesar de esfregar a barriga no batente da porta, conseguiu entrar. Machucou os locais que estavam rompidos pela hérnia. Mas estava lá dentro e isso é o que importava naquele momento.

- Ufa! - resmungou enquanto usava o vaso sanitário. Depois de alguns longos minutos, terminou seu “serviço”, limpou-se e foi sair.

Ai! Ai! Ai! Que sair o quê! Os locais com hérnia estavam doloridos e e toda aquela região abdominal inchou. Ui! Ui! Ui! Não dava para passar na porta novamente.

Sem alternativa, chamou o passageiro do último banco para que o ajudasse:

- Ô rapaz, ô rapaz, por favor, dá uma mãozinha aqui!

O passageiro veio lhe ajudar, tentando puxá-lo para fora.

- Pare, pare, pare! - gritou. - Está machucando minha hérnia.... pare!

Não dava para passar por aquela porta minúscula com a barriga machucada, inchada, e a hérnia parecendo que já ia estrangular.


Sanitários de ônibus requerem muito jogo de corpo para entrar e sair

Alguns passageiros viram a situação e foram tentar ajudar. Só que não dava para fazer nada naquela hora. Todos olhavam para a parte traseira do ônibus... Logo o motorista percebeu a movimentação no fundo do veículo e resolveu parar no acostamento. Veio também para ajudar, mas não foi possível resolver o impasse da miniporta do toalete.

Depois de alguns minutos de tentativas, seguiram viagem até Resende. Ele seguiu viagem dentro do toalete até que, nessa cidade, entraram na oficina da empresa de ônibus.

Foi somente lá que conseguiram resolver a situação: os mecânicos desmontaram o toalete do ônibus para retirar o infeliz (mas aliviado) passageiro e então prosseguir viagem ao destino: o frappé enlouquecedor!

Depois de "escapar" da cirurgia durante anos, um dia foi obrigado a fazer... se tivesse feito antes, provavelmente este caso não teria acontecido.

Algum comentário dele? Claro, nem um pouco preocupado e sentado à beira mar, tomando seu esperado frappé de whisky, exclamou filosoficamente: - Enquanto a caravana passa, é só pena que voa! Ahahahahah!.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

30) O caso da prótese ocular

Quem me recordou este caso foi a Maria Antonieta, irmã do Pingo, uma das testemunhas desta triste história. Vamos lá!

A mansão dos “Salles Gomes” foi vendida no início da década de 60 para o engenheiro agrônomo Rubens Vieira de Morais, que lá passou a residir com sua família. A casa é, até hoje, uma bela peça arquitetônica, tendo sofrido poucas e pequenas alterações em toda sua existência, não prejudicando seu conjunto.

Dr. Rubens, entre outras atividades, era negociante de automóveis, principalmente autos de luxo. Sua casa era repleta de Cadillack, Lincoln, Chevrolet Impala, Ford Thunderbird, Chrysler, Citroen, Simca, Aero Willys, Interlagos, Gordini. Volkswagen Sedan... e todos os carros dessa época. Com essa atividade, sempre havia necessidade de motoristas, que buscavam ou levavam os carros para outras cidades.

A residência ocupava quase todo o quarteirão. Só a igreja e o teatro do Rosário não faziam parte do imóvel (nessa parte hoje está instalada uma vidraçaria e funerária).

O quintal era estupendo. As árvores frutíferas e frondosas enfeitavam e perfumavam o lugar. Mangueiras enormes, abacateiros, ameixeiras, laranjeiras... todas as árvores frutíferas comuns de nossa região e, além destas, cajuzeiro e um belo pé de jacas.

A parte do pomar não existe mais. Hoje existem diversas residências por lá e o prédio da Telefônica. A casa continua igual, tendo apenas recebido algumas melhorias, adaptando-a a atualidade. O segundo prédio não existe mais. Era um pequeno sobrado, com uma garagem no pavimento inferior e alguns dormitórios na parte de cima. Esses cômodos eram, geralmente, utilizados por empregados da família.

Durante algum tempo, o bisavô do Pingo morou em um desses cômodos, dividindo com motoristas da casa. O bisavô no Pingo, Benedito Pires de Campos, conhecido com Benedito Anastácio, faleceu com 96 anos e até essa idade tocava violão.

Em determinada ocasião, dividiam no mesmo quarto o seu Benedito e o Antonio, um motorista vaidoso que havia sofrido um acidente e perdera uma de suas vistas e, por motivos estéticos, utilizava uma prótese ocular. Aquilo o incomodava bastante, não saía sem seu olho de vidro. Antonio era um homem moreno, descendente de índios e aparência de bonitão. Para dormir, Antonio retirava seu olho de vidro e colocava em um copo com água, deixando-o sobre uma cômoda.

Uma noite seu Benedito acordou com sede e, como estava escuro, procurou, tateando, seu copo para tomar água. Encontrou o copo que o Antonio colocava sua prótese ocular e pensou ser o seu. Já estava com água, mas não se preocupou... sua memória, com mais de noventa anos, não era nenhum primor. Costumava falhar. Levou o copo à boca e virou.

Não esperava que houvesse algo sólido na água e, sendo assim, o olho de vidro do Antonio foi engolido sem qualquer dificuldade. Seu Benedito apenas sentiu uma coisa qualquer, mas vupt, e desceu imediatamente com a água. Era pouco maior que uma cápsula de medicamento.

Na manhã seguinte, Antonio acordou e foi colocar sua prótese. Mas, que o quê! Cadê o olho de vidro? O copo estava vazio. Perguntou ao seu Benedito se ele não tinha mexido ali...

- Ai rapaz, acho que engoli junto com a água! – exclamou seu Benedito.

- O quê???? – gritou Antonio – Como vou fazer agora para sair na rua?

Antonio ficou furioso com aquela situação. Desceu as escadas correndo e foi chamar a dona Claudia, mãe do Pingo:

- Dona Claudia, seu avô engoliu meu olho! – reclamou quase gritando – Que eu faço agora?

Mas a mãe do Pingo tinha expediente. Pegou um penico e disse para o Antonio levar ao seu Benedito:

- Leva lá e pede para ele evacuar só no penico! Fale para ele usar o penico para "descarregar" o olho de vidro. – disse dona Claudia.

E assim foi feito. Para não correr risco de perder a prótese, Antonio não saiu para trabalhar, ficando junto do velho, esperando a hora da “criança nascer”.

Só que as coisas nem sempre acontecem da forma que se deseja. Seu Benedito não conseguiu fazer nem um cocozinho. Só soltou ruidosos puns. Barulhentos e terrivelmente fedidos, mas nada de obrar.

Dr. Rubens acabou indo até Itu com outro motorista. Lá passou em uma loja especializada e comprou outra prótese para o Antonio. Trouxe à tardinha, pensando em resolver de uma vez aquele problema.

Mas trouxe uma prótese de olho azul e a cor do olho do Antonio era castanho bem escuro. Ah, como ficou feio... um olho preto e um olho azul!

- O negócio - disse Antonio - é continuar esperando os resultados da obra do seu Benedito!

Mas a vida nunca anda do jeito que se espera. No segundo dia, seu Benedito também não conseguiu expelir a prótese do Antonio. Tomou um laxante, mas só teve algumas cólicas e aumentaram em intensidade os puns. Ah, mas cada peido!!! Peido de velho é realmente fedido.

Já passava das oito da noite do segundo dia quando seu Benedito avisou ao Antonio que agora sim, viria alguma coisa sólida.

Prepararam o penico, mas seu Benedito não conseguia abaixar-se adequadamente. Seu corpo, quase centenário, não obedecia à vontade do dono.

Ai, ai... ai... ai... nada de abaixar.

O que fazer? O velho não conseguia sentar no penico. E se fosse na privada, adeus olho de vidro!!

Dona Claudia, sabendo da situação, arrumou uma peneira e mandou colocar na privada, encaixada um pouco acima da água... com isto, seu Benedito faria tudo do “modo normal”, sentado no vaso sanitário e a “obra” ficaria na peneira.


Dito Anastácio ficou horas sentado no trono

Antonio entrou junto com seu Benedito na privada. Arrumou a peneira e esperou o velho sentar. Ficou ali, esperando a coisa chegar.

- Agora vem - disse seu Benedito.

Mas não veio. Ficaram mais de uma hora ali dentro. Peidos explodiam um atrás do outro, de todos os tipos: fininhos, grossos, retumbantes, discretos... e fedidos, todos eram fedidos.

O tempo passava, mas a situação não mudava.

De repente, ploft, caiu um troço na peneira.

- Ufa! – suspirou seu Benedito – nasceu a criança!

Logo que seu Benedito levantou, Antonio pegou a peneira com a obra e começou a procurar seu olho. Mexe, mexe, mexe.... nada, não foi desta vez que foi expelido!

- Vamos ter que continuar o serviço, seu Benedito, não saiu ainda. – disse Antonio.

Mas o velho já estava dormindo. O esforço para obrar havia exaurido suas forças.

Sem ter mais o que fazer, Antonio lavou tudo por ali e deitou-se também. Dormiram a noite toda tranquilamente, não aconteceu nada extraordinário. Logo pela manhã, no entanto, seu Benedito levantou-se rapidamente da cama e correu até a privada. A “coisa” estava chegando rapidamente.

Quando chegou lá, viu que a peneira não estava colocada e berrou para acordar o Antonio.

- Antonio, ponha a peneira! Ponha a peneira que vem vindo uma bomba!

Limpar bunda de velho não é tarefa agradável

Correndo, Antonio pegou a peneira e foi ajeitando, enquanto seu Benedito começava a obra ainda sem sentar-se. Puzz, puzz, prrrrr! Sentou-se e evacuou.

Desta vez deve ter feito, no mínimo, um quilograma de mérda. Um pouco escorreu fora, pois não deu tempo, mas a maior parte estava depositada sobre a peneira.

Depois da "coisa" vir à luz, seu Benedito levantou-se e foi tomar um banho. Papel higiênico era muito pouco para a sujeira.

Antonio começou a garimpar o cocô, tentando encontrar seu olho de vidro. Arrasta aqui, mexe ali, espalha acolá... eis que aparece a coisa. Desta vez a obra foi completa. Tudo resolvido.



Uma boa lavada, um pouco de álcool e pronto, já dava para usar aquela prótese.

Sem alternativa, Antonio teve que enfiar a mão na massa

Ainda bem que olho de vidro não enxerga, pois os lugares e as coisas que este presenciou não foram nem um pouco agradáveis. Que horror!

terça-feira, fevereiro 21, 2006

29) Tatuianos na Festa do Vinho de S. Roque

Alguns amigos estão recolhendo casos aqui e ali para que eu possa dar continuidade aos “causos”. Outros casos anteriormente escritos já têm contribuições, mas este foi repassado especialmente para os “Casos Tatuianos” pelo meu amigo Fabio Del Fiol.

Este caso aconteceu com o padre Murari, seu grande amigo Rui Português e o Dito Gordo, embaixador de Tatuí em Guarujá.

Certa ocasião, os três foram até a cidade de São Roque, por ocasião da festa do vinho. E vinho era coisa que interessava ao padre. Aliás, todos os padres têm interesse em vinho, visto que essa bebida é utilizada na liturgia católica.

Festa de padre tem que ter vinho

Mesmo que as aquisições vinícolas da paróquia fossem coordenadas pela diocese, nada impedia que o padre Murari fosse experimentar os produtos disponíveis em São Roque.

Atualmente alguns municípios do Rio Grande do Sul e até mesmo de Santa Catarina dominam a produção de vinho no Brasil. São Roque ainda produz vinho, mas a uva utilizada nessa atividade é importada do Sul.

Já o interesse do Rui Português não tinha nada de eclesiástico. Era essencialmente alcoólico. Dito Gordo, nessa ocasião ainda não era o embaixador de Tatuí em Guarujá e estava era fazendo turismo com os amigos.

Por falar em Guarujá, foi lá que o ex-presidente Jânio Quadros passou a residir depois de seu retorno do exílio. Jânio tinha sinceros amigos tatuianos, que costumavam visitá-lo frequentemente.

Jânio apreciava whisky

Conta-se que, em determinada ocasião, lá estavam os amigos tatuianos de Jânio Quadros em frente ao portão de sua casa. Apertaram a campainha e aguardaram abrir a porta. Se atualmente muitas casas têm sistema de vigilância com câmeras de vídeo, naquela época isso era uma raridade. Jânio aproveitava para fazer das suas com isto. Viu que eram os tatuianos e falou pelo interfone:

- Estou muito cansado. Só atendo se for o pessoal de Tatuí! – disse Jânio com a voz abafada e rouca.

- Somos nós, presidente! Somos nós! – gritaram todos a uma só voz.

Isto encantou os visitantes, que ficaram achando que Jânio fazia uma deferência especial aos tatuianos. Provavelmente ele fazia assim como todos visitantes, mas que funcionou, funcionou! Os tatuianos sentiram-se especiais!

Dentro de sua casa, conversando, Jânio servia-se fartamente de whisky escocês, mas distribuía Scotch Bard e Drury’s para os tatuianos, dizendo:


- Vocês já estão acostumados com estes!


Jânio não ficava sem seu whisky

Mas lá em São Roque, nossos outros amigos não ficaram com as sobras. Tomaram os melhores vinhos, em quantidades absurdas. Padre Murari tinha algumas ligações com a cidade de São Roque. Não sei exatamente quais, mas há nessa cidade a Rua Monsenhor Silvestre Murari, homenageando o velho padre.

O vinho, conforme a quantidade, deixa todos como palhaços

Experimenta este, beberica aquele, repete outro... nessa alegre atividade transcorreram algumas horas. Difícil foi levantarem-se das cadeiras, pois parecia que havia um paralelepípedo em cada joelho, tantas foram as experimentações vinícolas.

Levantar das cadeiras não foi fácil para os três

Conforme haviam combinado, foram dormir em um hotel de São Roque. Não dava para voltar para Tatuí naquele estado: estava realmente bêbados. Bêbados mas mantinham a linha. Não aconteceu nenhum pequeno deslize.

Mas para dormir padre Murari e o Rui nem banho tomaram. Foram direto para a cama. Haviam escolhido um quarto com três camas, para dormirem todos juntos.

A partir de uma certa idade, a maioria das pessoas usa dentaduras

Antes de deitar, padre Murari colocou sua dentadura em um copo com água que pegou na cozinha do hotel. A mesma coisa fez Rui Português. Em poucos minutos estavam ambos dormindo.

O padre colocou sua dentadura em um copo com água

Dito Gordo não tinha bebido tanto quanto os amigos. Ele era o mais jovem do grupo e o mais ajuizado, decerto. Estava quase sóbrio. Entrou no chuveiro e tomou um refrescante banho, antes de deitar.

Quando foi apagar a luz, Dito Gordo viu os dois dormindo, roncando, parecia que estavam tocando instrumentos de sopro. Deitou-se, mas não conseguia dormir. O ronco dos dois amigos estava insuportável. Em determinados momentos, parecia que o padre estava tocando um trombone e Rui uma tuba.

A araponga do padre fazia um ruído horrível

De repente mudava a tonalidade e parecia uma clarineta desafinada fazendo dueto com uma araponga (quem se lembra da barulhenta araponga do padre Murari? Eu que o diga, pois morava em frente à casa paroquial e aquela ave maldita batia a bigorna o dia inteiro: PÉÉÈM! PÉÉÉM!).

Como não conseguia dormir, Dito Gordo pensou em levantar-se e sair um pouco. Mas estava cansado. Pensou em ler alguma coisa, tentando distrair seus ouvidos daquela sinfonia infernal (o padre que me perdoe, mas seu ronco não tinha nada de celestial).

Nisso viu os dois copos com as dentaduras dos amigos e teve uma idéia: inverteu os copos de lugar... a dentadura do padre com Rui e vice-versa!

A barulhenta orquestra noturna do padre Murari não deixou o restante do hotel dormir

Logo foi vencido pelo sono. Ainda bem que não escutava a si próprio roncando, porque a partir de sua entrada de seu “instrumento” no concerto, o resto do hotel acordou... ROOONCC! ROOONCC! ROOONCC! ROOONCC! ROOONCC! ROOONCC! ROOONCC! Parecia a serraria de meu avô, abrindo toras em pranchas, pranchas em vigas, vigas em caibros e tábuas... Agora a sonoridade lembrava a serra vertical, a francesa, as serras de fita e a circular... Só sob efeito do álcool é possível dormir com um barulho desses!

Na manhã seguinte levantaram cedo, para voltar a Tatuí. Cada um foi ao banheiro fazer suas necessidades, lavar a boca e colocar as dentaduras. Ninguém reclamou de nada. Parecia que ainda estavam sob efeito do vinho.

Passava pouco das 8 da manhã e já estavam na estrada. Antes de sair com o carro, colocaram algumas dúzias de garrafas no porta-malas. Umas de presente para amigos, mas a maioria para o padre usar na liturgia.

O Rui estava com uma fisionomia de papel amassado. O padre, com sua batina preta, toda furada de brasa de cigarro de palha, estava com cara que quem comeu e não gostou, ou melhor, de quem bebeu...

Alguns minutos em silêncio e começaram a comentar sobre a festa do vinho.

Rui falou:

- Puxa, bebi tanto... mas acho que o vinho não era muito bom. Estou com uma ressaca estranha, até a minha boca parece que murchou!

O padre comentou então:

- Gozado, eu também achei isso, só que a minha boca parece que inchou!

Dito Gordo não se conteve e começou a gargalhar... ria sem parar, olhando para os dois amigos que não tinham percebido que suas dentaduras haviam sido trocadas.

- Eu troquei as dentaduras! Ahahahahah! Eu troquei as dentaduras!

Só então que os dois perceberam a situação. Retiraram as dentaduras e destrocaram. Mas não havia água para lavar e, sendo assim, saiu de uma boca e entrou em outra.

Rui Português fez o restante da viagem cuspindo pela janela do carro. O padre ficou aborrecido com isto e dizia:

- O Rui, você está com nojo de mim? Garanto que sua boca já andou em lugares piores que a minha!

Dito Gordo não usava prótese dentária... mas mostrou seus dentes rindo a viagem toda


Dito Gordo riu a viagem toda. Os outros dois só conseguiram rir uns dias depois... quando já tinha lavado adequadamente as dentaduras...

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

28) O maior tocador de pandeiros do Brasil

Alguma coisa que se faz pode trazer conseqüências que trazem reflexos durante a vida toda. Um ato impensado, uma brincadeira, alguma coisa involuntária... qualquer coisa pode, de uma forma ou de outra, transformar-se, com um pouco de azar, em problemas, doenças ou, se a sorte for boa, em motivo de sucesso.

Assim também é o nome que se escolhe para os filhos. O nome marca a pessoa pela vida toda. Só que em Tatuí não adianta a escolha dos pais, o que resolve mesmo é o apelido com que será “batizado”. Aí não resolve nada o nome ser bonito, feio, comum ou exótico. O que vale é o apelido.

Algumas pessoas têm nomes que já parecem apelido, mas mesmo assim não ficam livres do rebatismo: lembro-me do Hermógenes... um nome incomum, rebatizado para Mauzico e, posteriormente, para Meninão. Os exemplos são infindáveis.

Joaquim Mistura recebeu seu apelido devido a um pequeno deslize que cometeu na adolescência.

Sua mãe não tinha renda suficiente e, com isto, fez com que o menino Joaquim trabalhasse para ajudar nas despesas. Creio que trabalhou bastante e “gastou a pilha”, porque nunca mais exerceu atividades produtivas... sua única e exclusiva atividade era tocar pandeiro. E beber, claro!

O emprego que arrumaram para o Joaquim era de entregador de marmitas de uma pensão da cidade. As pessoas comem de pensão devido a inúmeros motivos, sendo que a falta de tempo e a impossibilidade de cozinhar podem ser citados como uma das razões.

Se é uma comodidade comprar a comida pronta, ter que ir buscar a marmita não é uma atividade agradável e, em muitos casos, nem mesmo dá para ir buscar... pessoas idosas, crianças, gente com horários apertados...
Marmitas entregues e saqueadas pelo Joaquim Mistura

Sendo assim, é comum existir “entregadores profissionais de marmita”. Que bela profissão!!!

Joaquim desde criança era malandro. Fazia as entregas, mas distraia-se com facilidade... qualquer jogo de bolinha de gude, uma movimentação diferente na rua, chuva, sol... tudo era motivo para Joaquim demorar-se mais que o previsto.

E tinha um apetite monstruoso. Comia até pedregulho, se fosse possível. E a carga das marmitas exercia uma atração no menino. Adorava carne, almôndegas, croquetes, bolinhos, etc.

Sendo assim, na primeira esquina que virava, quando trabalhava para a pensão, dava um jeitinho e levantava as marmitas para espiar o conteúdo. Olhava de um lado e de outro e surrupiava um bolinho, um pedaço de carne de cada marmita... assim ninguém percebia e reclamava... ele continuaria com seu pequeno delito.

Mas algumas pessoas perceberam a atividade criminosa do Joaquim. Quando viram o Joaquim carregando as marmitas, alguém apontou e disse: “Olha só, o Joaquim roubando “mistura” das marmitas!”

É costume chamar de mistura à carne e aos bolinhos que são servidos com o arroz e o feijão (estes considerados como “comida”).

Pronto! Perceberam o que o Joaquim fazia e logo perdeu seu emprego. Perdeu o emprego, mas ganhou um belo apelido "Joaquim Mistura" que o acompanhou a vida inteira. Ninguém lembra seu nome, só seu apelido. Nem mesmo ele atende pelo nome, Joaquim Soares Carriel... seu nome é Joaquim Mistura e só!

Instrumento que Joaquim Mistura sempre tocou

Joaquim explorou sua veia musical. É o maior tocador de pandeiros que já existiu em Tatuí. Ele é o “Grande Joaquim Mistura” e tocou até mesmo na Radio Nacional do Rio de Janeiro, nos tempos áureos dessa emissora.

Auditório da Rádio Nacional (Rio de Janeiro)

É até mesmo possível considerar a carreira musical do Joaquim Mistura como de grande sucesso, haja vista que só fez isso na vida e nunca mais trabalhou além daquele pequeno período, quando roubava misturas. Foi, em decorrência de sua atividade musical, convidado para todas as festas que aconteceram em Tatuí desde o final da década de 1940 até uns poucos anos atrás.

Joaquim apreciava todo tipo de bebida

Como músico esteve em todo tipo de ambiente: bons e maus, certos e errados, claros e escuros... só não freqüentou igrejas! Vivia em bares, sempre foi apreciador de licores, pinga, vinho, wiskey, chopp, cerveja, conhaque, vodka, rum... tudo, gostava de tudo que tivesse álcool.

Tocador de pandeiros tem de ter ritmo

Agora a "mistura" preferida do Joaquim não era mais aquela antiga... sua "mistura" tinha que ser rabo de galo... pinga com limão... pinga com soda... rum com Coca-Cola... gim com tônica... vodka com laranjada e assim por diante

Segurando na parede Joaquim não cai (foto de julho de 2008)

Esta é a história do grande Joaquim Mistura, o maior tocador de pandeiros do Brasil.

sábado, fevereiro 18, 2006

27) João Bituca, o malandro

Alguns tatuianos ostentaram apelidos durante a vida inteira, como foi o caso do João Bituca (ou João Engraxate).

O João Bituca foi o engraxate de maior sucesso em Tatuí. Estabeleceu-se na Praça da Matriz, ao lado do Clube Recreativo XI de Agosto.

Entre a parte social do Clube Recreativo e o salão de jogos, havia um portão que não era usado e foi neste local que ele montou sua engraxataria. Um sucesso, pois nessa época todos usavam sapatos e tinham que estar sempre brilhando. Quando alguém ia até a engraxataria sempre havia espera, porque estava costumeiramente lotada.

João Bituca foi engraxate desde menino. Logo ficou bastante conhecido na cidade e teve sua grande chance quando lhe foi cedido um espaço do Clube Recreativo, onde instalou sua engraxataria.

- Quer engraxar, hoje? – perguntava João a todos que passavam pela praça.

Seu apelido foi decorrente de seu vício de fumar. A todo mundo que via fumando, já pedia:

- Dá a bituca pra mim?

Foi o que bastou: tanto pediu a ponta do cigarro dos freqüentadores da praça que logo ficou conhecido como João Bituca. Esse apelido “grudou” no João durante sua vida inteira.

A Praça da Matriz era freqüentada por todos. Nos dias da semana por lá se encontravam estudantes e os moradores da região central da cidade. Todo mundo conhecia todo mundo. À noite o costume era dar voltas na praça, homens de um lado e mulheres do outro, em uma paquera contínua, das 8 da noite até as 10 horas. Ou melhor, até uns quinze minutos para as dez, porque às 10 horas em ponto a praça tornava-se um deserto.

O João, como havia sido engraxate desde menino, freqüentava a praça e convivia com os estudantes. Na parte da manhã ele estava com o pessoal que estudava à tarde ou à noite. Depois do almoço ele conversava com quem estudava de manhã. Ou seja, sempre havia alguém para conversar com o João, que se sentia bastante “chegado” dos estudantes.

Era conversa de igual para igual, ainda mais que estudante não tem dinheiro e ele, como trabalhava, sempre tinha algum e, por isso, era convidado para ir neste ou naquele bar. Além do que, ele se achava um excelente malandro, enquanto que achava que os amigos eram otários, porque iam à escola. Ele apenas não percebeu que seus amigos, exatamente porque freqüentavam escolas, em pouco tempo mudavam sua vida e passavam a trabalhar em atividades melhores que o João, ganhando muito mais, é claro.

As visitas aos bares, onde era bem recebido enquanto tinha algum dinheiro, encaminharam-no ao vício do álcool.

Logo aqueles amigos afastaram-se dele, não só devido as constantes bebedeiras, mas porque já estavam com outras ocupações. Ele não entendia a razão, mas considerou que apenas ele estava certo e todos errados. Pudera, ele era malandro!

Para o João Bituca todo mundo era otário:

- Fulano é otário! Cicrano é otário! Beltrano é otário. O Bolinha é otário! – costumava dizer.

Mas Bolinha, fabricante e vendedor de mel, era seu único amigo. Tão amigo que na casa deste havia um quadro com uma fotografia dos dois.

Certo dia, conversando com uma pessoa que há tempos não via, pois não morava mais na cidade, “contou” que todo mundo da cidade era otário, que só tinha “trouxas” e que ele era “o bom”. Esse era o Cláudio do Timbio.

O Cláudio disse para o João:

- É mesmo, aqui só tem otários. Vou levar você comigo para Santos, vamos à praia e ver as mulheres mais lindas do Brasil. A mulherada de biquíni. Você vai deixar os “trouxas” de Tatuí com a boca aberta quando contar o que fará por lá!

- Ê, meu! Não tenho grana! - respondeu João.

- Não precisa de dinheiro. É tudo por minha conta. Você é meu amigo... pode deixar que eu pago o que precisar. - garantiu Cláudio.

- Ah, então vamos sim, estou cheio desta cidade que só tem otários – respondeu João.

E o Cláudio cumpriu o que prometeu. No dia seguinte tomaram um ônibus e foram a São Paulo. De lá pegaram outro para Santos, chegando à tarde desse mesmo dia. Estavam com fome, mas Cláudio foi logo avisando que iriam jantar em um restaurante chique, comer frutos do mar.

Santos é famosa pelos jardins da praia

Foram a um restaurante elegante à beira-mar. Nesse restaurante todos estavam com roupa social, até mesmo o Cláudio vestia-se adequadamente, mas o pobre João Bituca era uma figura destoante.

- João, você já comeu lagosta?

- Não! – respondeu.

- Então hoje você vai comer coisas que os otários de Tatuí nunca provaram. Lagosta, camarão, polvo, lula... tudo que quiser.
Lagosta, prato degustado pelo João Bituca

Cláudio chamou o garçom e não economizou. Pediu tudo do bom e do melhor, acompanhado de vinho importado.

Quando chegou o pedido, João nem sabia por onde começar, mesmo porque nem sabia como comer aquilo. Mas buscou encontrar um jeito: observou o que Cláudio fazia para comer, tentou, tentou e acabou comendo mesmo foi com as mãos!

A mesa dos dois estavam maravilhosa, não economizaram em nada

Comeram a valer. Repetiram o vinho duas vezes.

O Cláudio disse para o João:

- Vamos escolher uma sobremesa. Uma refeição completa não pode ficar sem sobremesa.

Chamou o garçom e pediu o menu para escolher.

Escolheu alguma coisa que disse gostar e deu o menu para o João escolher. Quando o João escolhia, o Cláudio disse que viu um conhecido passar na frente do restaurante e avisou ao João que iria chamar a tal pessoa para fazer companhia aos dois.

- Espera um instantinho aqui, João! Eu só vou chamar o meu amigo e já volto. Enquanto espera, peça a sobremesa.

Ah, João Bituca não se fez de rogado. Pediu, com auxílio do garçom, um sorvete especial, já que não entendia nada do menu.

O sorvete demorou um pouco para chegar, mas veio e o Cláudio ainda não havia voltado. João olhava insistentemente para a porta do restaurante, ansioso por ver o companheiro voltar.

Tomou o sorvete olhando para a porta.

Sua figura, destoante, começou a chamar a atenção do pessoal do restaurante. Os seguranças já estavam rodeando, de olho no João. Isto porque havia mais de meia hora que ele estava sozinho. Não tinha mais o que fazer por lá e olhava para a porta sem parar.

O garçom trouxe a conta e apresentou ao João. Ele nem mesmo entendeu direito o valor, porque não poderia imaginar que um jantar pudesse custar tudo aquilo: “Acho que erraram e tem um zero a mais!” – pensou.

Mas não havia erro algum. A conta era alta mesmo. Pudera, lagosta, camarão, lula, polvo, vinho do Porto, não são coisas comuns.

Uma hora inteira já se passara. João levantou-se para olhar fora do restaurante, ver se encontrava o Cláudio. Quando se levantou, os seguranças correram para seu lado.

Quis se aproximar da porta, mas foi abordado pelos seguranças, que ordenaram para ele ir até o caixa, pagar a conta.

João estava desesperado. Não tinha nem um cruzeiro no bolso e o Cláudio demorava demais para voltar!

Demorava e não voltou. O garçom, seguranças e maitre do restaurante já haviam fechado o caminho de saída para o João. Não dava para ele sair fora.

- O Cráudio já vórta pra pagá a conta! – repetia incessantemente.

Chamaram a polícia e levaram o João em um escritório nos fundos do restaurante. Em pouco tempo perceberam que estavam lidando com um otário que havia caído em um conto.

- Não vamos receber o dinheiro. A conta não será paga, porque você é um otário sem dinheiro! – disseram ao João – Mas não pense que vai sair desta com facilidade. Vai em cana!

João saiu algemado e conduzido para a viatura. Levaram para a cadeia e prenderam por 3 dias.

Se em Tatuí as celas ainda não eram superlotadas, em Santos eram terrívelmente lotadas

Quando soltaram, ainda ficaram com dó dele, fizeram uma “vaquinha” e arranjaram dinheiro para a passagem de volta até Tatuí. Sabiam que, se ele ficasse em Santos, dentro de poucos dias estaria de volta à cadeia, como vítima ou como autor de algum delito.

- Ô otário, vê se aprende agora! – aconselharam na saída.

Quando o João voltou em Tatuí todos já sabiam da história, porque o Cláudio logo depois de sair do restaurante já tomara o ônibus e sumiu de Santos. Contou para todo mundo a maldade que fizera ao pobre do João.

Mas quando se perguntava ao João o que tinha acontecido, ele desconversava e não contava para ninguém. Tentei arrancar dele o final desta história, o que aconteceu direito no restaurante e na cadeia, mas ele dava um jeito de desconversar e não contava. Não faz muito tempo que tentei pela última vez descobrir... poucos meses antes dele falecer. Mas que o que... não contou!

Faleceu há pouco tempo e ganhava a vida como vendedor de bilhetes. Era um vendedor chato e abusado: chegava perto de algum possível freguês e dizia:

- Viado! Viado!

Quando a pessoa, irritada, olhava imediatamente para seu lado, ele mostrava o bilhete do veado:

- Quer comprar o bilhete do viado?

Às vezes se aproximava de uma mulher e dizia:

- Vaca! Vaca!

Essa tal mulher, sentindo-se ultrajada, virava-se para o lado do João, que mostrava um bilhete e dizia:

- Quer comprar o bilhete da vaca?

Isto porque ele, em sua concepção, não era otário... os outros é que eram... achava-se um grande malandro.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

26) A piteira do Mirto Grazzia

Eu conheço muitas pessoas que podem ser consideradas como boas de conversa. Pessoas que convencem qualquer um com bastante facilidade e das coisas mais absurdas.

Só que ainda não encontrei alguém que conseguisse suplantar Nilton Grazzia, proprietário de uma oficina multifuncional (fazia de tudo) até os primeiros anos da década de 70, quando faleceu. Apesar de seu nome ser Nilton, todos em Tatuí chamavam-no de Mirto Grazzia.

Em sua oficina ele realizava consertos mecânicos e de funilaria. Até hoje lembro do Tico, seu funcionário que passava os dias inteiros lixando latarias dos carros que lá estavam. E ponha lataria nisto, pois nessa época os carros, sem exceção, tinham latarias imensas e pesadas. Não se economizava material.

Quando o conheci, sua oficina ficava na Praça da Bandeira, mas logo depois mudou para a Rua 13 de Fevereiro, atrás do “Rustão”. Não sabe o que é o tal “rustão”? É o motor Ruston que gerava energia elétrica para a Fábrica Campos & Irmãos.
Esse tipo de motor é enorme

Esse motor ainda está no mesmo local, mas não funciona mais, mesmo porque a própria fábrica está desativada. Nesse motor há uma pequena passarela e escada, para fazer as manutenções. Enorme.

Mas vamos ao que interessa neste momento: na oficina do Nilton tinha um caminhão aguardando reparos, sem motor e sem o capô do motor. Já fazia um tempão que o caminhão estava na oficina. Tanto tempo que cresceu uma amoreira no lugar do motor e a árvore tinha uns 3 metros de altura quando ocorreram os fatos que conto aqui.

O caminhão estava mais ou menos como este, com uma árvore no lugar do motor

Eu tinha 16 anos e ia quase todos os dias na oficina do Nilton, para xeretar ou lixar a lataria de um Jeep 1951 que o Pingo estava reformando ou o Ford Coupe 1947 do Adrianinho. Nem sei se ajudava ou atrapalhava, mas estava todo dia por lá.

Eu e os amigos ainda saíamos passear com o Nilton. Andar com ele em seu Ford. Um bando de moleques escutando suas "papeadas"... Ele caprichava nas histórias que contava!


Jeep 51

Nilton era um mecânico excelente. Seu Ford, um sedan 1937, estava sempre tinindo.

- Este é o melhor Ford do ramal de Itararé! – costumava papear.


Ford sedan igual ao do Nilton

Entretanto, como mecânico ele era o rei do improviso. A falta de peças não o assustava. Ele sempre improvisava alguma coisa para substituir. Além do Jeep, o Nilton reformou um Ford Coupe 1947 para o Adrianinho, pintando a jóia de amarelo “quibebe”. As duas reformas foram na mesma época, com pouco tempo de intervalo entre elas.

Não deixava de consertar seja lá o defeito que fosse. Certa vez, o Ford 47 do Adrianinho estava com muita folga na direção. Coisa de quase meia volta do volante. Não dava para guiar aquele carro pesado com essa folga na direção.

Ford Coupe 1947

Nilton disse que poderia passar à tardinha que o carro já estaria consertado. Dito e feito! Parecia que era “zero quilometro”, de tão ajustada que ficou a direção. Nenhuma folga!

Isso é o que se chama de serviço profissional.

Mas não tinha garantia. E em poucos dias começou novamente a aparecer uma pequena folga. E a folga foi aumentando, aumentando, aumentando... já dava quase uma volta inteira no volante.

Desta vez Adrianinho não levou ao Nilton, mas em outro mecânico. Ao abrir a caixa de direção deu para perceber o problema: como o parafuso de ajuste não dava mais para apertar, Nilton deu uma “improvisada” com caco de telha, que colocou como calço. Imagine só, “embuchar” uma caixa de direção com caco de telha!!! Isso sim que é improvisação.

Uma tarde, eu e o Pingo estávamos sentados na frente da oficina, esperando que o Nilton viesse de seu almoço, abrir o portão para que pudéssemos entrar e mexer no Jeep.

Apareceu o dono do caminhão da amoreira, armado e enfurecido, dizendo que nesse dia mataria o Nilton, que não entregava seu caminhão. Disse que seu veículo estava lá havia 3 anos. O motor tinha desaparecido.

- Hoje eu mato o Mirto! – repetia sem parar.


Enquanto falava, parecia mesmo muito bravo... mostrava seu revólver o tempo todo. Todo mundo ficou assustado com aquilo. Eu torcia para o Nilton não aparecer. Mas ele veio.

Veio, o cara já começou a ficar alterado, gritava o tempo todo. Nilton colocou um cigarro em sua piteira, acendeu, e convidou o homem para entrarem. Entraram e ele fechou o portão e ficaram os dois sozinhos.

Passaram alguns minutos e já não se ouvia o homem gritando. Mas também não se ouvia nenhum tiro.

Mais alguns minutos passaram e resolvemos olhar por cima do muro, para descobrir o que acontecia.

Vimos o Nilton, conversando calmamente com seu freguês, com o revólver dele em sua mão, girando o tambor descarregado. Girava, girava... devolveu as balas para o dono e disse que o revólver estava com folga no tambor e que ele iria consertar...

- Vou mandar embuchar pra você! – disse Nilton, falando com a piteira entre os dentes e soltando algumas baforadas de fumaça no rosto do freguês.

Logo em seguida, abriu o portão, nós entramos e o cliente foi embora. Não estava mais bravo, saía com uma fisionomia esperançosa.

- Ô Mirto, o que você fez para acalmar o homem? Ele disse que ia matá-lo! - perguntei ao Nilton.

- Ah, eu coloco um pozinho na minha piteira – respondeu dando gargalhada – Solto umas baforadas da cara da pessoa e fica logo mansinho, mansinho!

No final da história, o homem, além do caminhão, agora deixava até o seu revólver na oficina do Nilton. E ainda foi embora contente!
Esse era o Nilton Grazzia com sua piteira enfeitiçada.