sexta-feira, fevereiro 17, 2006

26) A piteira do Mirto Grazzia

Eu conheço muitas pessoas que podem ser consideradas como boas de conversa. Pessoas que convencem qualquer um com bastante facilidade e das coisas mais absurdas.

Só que ainda não encontrei alguém que conseguisse suplantar Nilton Grazzia, proprietário de uma oficina multifuncional (fazia de tudo) até os primeiros anos da década de 70, quando faleceu. Apesar de seu nome ser Nilton, todos em Tatuí chamavam-no de Mirto Grazzia.

Em sua oficina ele realizava consertos mecânicos e de funilaria. Até hoje lembro do Tico, seu funcionário que passava os dias inteiros lixando latarias dos carros que lá estavam. E ponha lataria nisto, pois nessa época os carros, sem exceção, tinham latarias imensas e pesadas. Não se economizava material.

Quando o conheci, sua oficina ficava na Praça da Bandeira, mas logo depois mudou para a Rua 13 de Fevereiro, atrás do “Rustão”. Não sabe o que é o tal “rustão”? É o motor Ruston que gerava energia elétrica para a Fábrica Campos & Irmãos.
Esse tipo de motor é enorme

Esse motor ainda está no mesmo local, mas não funciona mais, mesmo porque a própria fábrica está desativada. Nesse motor há uma pequena passarela e escada, para fazer as manutenções. Enorme.

Mas vamos ao que interessa neste momento: na oficina do Nilton tinha um caminhão aguardando reparos, sem motor e sem o capô do motor. Já fazia um tempão que o caminhão estava na oficina. Tanto tempo que cresceu uma amoreira no lugar do motor e a árvore tinha uns 3 metros de altura quando ocorreram os fatos que conto aqui.

O caminhão estava mais ou menos como este, com uma árvore no lugar do motor

Eu tinha 16 anos e ia quase todos os dias na oficina do Nilton, para xeretar ou lixar a lataria de um Jeep 1951 que o Pingo estava reformando ou o Ford Coupe 1947 do Adrianinho. Nem sei se ajudava ou atrapalhava, mas estava todo dia por lá.

Eu e os amigos ainda saíamos passear com o Nilton. Andar com ele em seu Ford. Um bando de moleques escutando suas "papeadas"... Ele caprichava nas histórias que contava!


Jeep 51

Nilton era um mecânico excelente. Seu Ford, um sedan 1937, estava sempre tinindo.

- Este é o melhor Ford do ramal de Itararé! – costumava papear.


Ford sedan igual ao do Nilton

Entretanto, como mecânico ele era o rei do improviso. A falta de peças não o assustava. Ele sempre improvisava alguma coisa para substituir. Além do Jeep, o Nilton reformou um Ford Coupe 1947 para o Adrianinho, pintando a jóia de amarelo “quibebe”. As duas reformas foram na mesma época, com pouco tempo de intervalo entre elas.

Não deixava de consertar seja lá o defeito que fosse. Certa vez, o Ford 47 do Adrianinho estava com muita folga na direção. Coisa de quase meia volta do volante. Não dava para guiar aquele carro pesado com essa folga na direção.

Ford Coupe 1947

Nilton disse que poderia passar à tardinha que o carro já estaria consertado. Dito e feito! Parecia que era “zero quilometro”, de tão ajustada que ficou a direção. Nenhuma folga!

Isso é o que se chama de serviço profissional.

Mas não tinha garantia. E em poucos dias começou novamente a aparecer uma pequena folga. E a folga foi aumentando, aumentando, aumentando... já dava quase uma volta inteira no volante.

Desta vez Adrianinho não levou ao Nilton, mas em outro mecânico. Ao abrir a caixa de direção deu para perceber o problema: como o parafuso de ajuste não dava mais para apertar, Nilton deu uma “improvisada” com caco de telha, que colocou como calço. Imagine só, “embuchar” uma caixa de direção com caco de telha!!! Isso sim que é improvisação.

Uma tarde, eu e o Pingo estávamos sentados na frente da oficina, esperando que o Nilton viesse de seu almoço, abrir o portão para que pudéssemos entrar e mexer no Jeep.

Apareceu o dono do caminhão da amoreira, armado e enfurecido, dizendo que nesse dia mataria o Nilton, que não entregava seu caminhão. Disse que seu veículo estava lá havia 3 anos. O motor tinha desaparecido.

- Hoje eu mato o Mirto! – repetia sem parar.


Enquanto falava, parecia mesmo muito bravo... mostrava seu revólver o tempo todo. Todo mundo ficou assustado com aquilo. Eu torcia para o Nilton não aparecer. Mas ele veio.

Veio, o cara já começou a ficar alterado, gritava o tempo todo. Nilton colocou um cigarro em sua piteira, acendeu, e convidou o homem para entrarem. Entraram e ele fechou o portão e ficaram os dois sozinhos.

Passaram alguns minutos e já não se ouvia o homem gritando. Mas também não se ouvia nenhum tiro.

Mais alguns minutos passaram e resolvemos olhar por cima do muro, para descobrir o que acontecia.

Vimos o Nilton, conversando calmamente com seu freguês, com o revólver dele em sua mão, girando o tambor descarregado. Girava, girava... devolveu as balas para o dono e disse que o revólver estava com folga no tambor e que ele iria consertar...

- Vou mandar embuchar pra você! – disse Nilton, falando com a piteira entre os dentes e soltando algumas baforadas de fumaça no rosto do freguês.

Logo em seguida, abriu o portão, nós entramos e o cliente foi embora. Não estava mais bravo, saía com uma fisionomia esperançosa.

- Ô Mirto, o que você fez para acalmar o homem? Ele disse que ia matá-lo! - perguntei ao Nilton.

- Ah, eu coloco um pozinho na minha piteira – respondeu dando gargalhada – Solto umas baforadas da cara da pessoa e fica logo mansinho, mansinho!

No final da história, o homem, além do caminhão, agora deixava até o seu revólver na oficina do Nilton. E ainda foi embora contente!
Esse era o Nilton Grazzia com sua piteira enfeitiçada.

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