sábado, fevereiro 18, 2006

27) João Bituca, o malandro

Alguns tatuianos ostentaram apelidos durante a vida inteira, como foi o caso do João Bituca (ou João Engraxate).

O João Bituca foi o engraxate de maior sucesso em Tatuí. Estabeleceu-se na Praça da Matriz, ao lado do Clube Recreativo XI de Agosto.

Entre a parte social do Clube Recreativo e o salão de jogos, havia um portão que não era usado e foi neste local que ele montou sua engraxataria. Um sucesso, pois nessa época todos usavam sapatos e tinham que estar sempre brilhando. Quando alguém ia até a engraxataria sempre havia espera, porque estava costumeiramente lotada.

João Bituca foi engraxate desde menino. Logo ficou bastante conhecido na cidade e teve sua grande chance quando lhe foi cedido um espaço do Clube Recreativo, onde instalou sua engraxataria.

- Quer engraxar, hoje? – perguntava João a todos que passavam pela praça.

Seu apelido foi decorrente de seu vício de fumar. A todo mundo que via fumando, já pedia:

- Dá a bituca pra mim?

Foi o que bastou: tanto pediu a ponta do cigarro dos freqüentadores da praça que logo ficou conhecido como João Bituca. Esse apelido “grudou” no João durante sua vida inteira.

A Praça da Matriz era freqüentada por todos. Nos dias da semana por lá se encontravam estudantes e os moradores da região central da cidade. Todo mundo conhecia todo mundo. À noite o costume era dar voltas na praça, homens de um lado e mulheres do outro, em uma paquera contínua, das 8 da noite até as 10 horas. Ou melhor, até uns quinze minutos para as dez, porque às 10 horas em ponto a praça tornava-se um deserto.

O João, como havia sido engraxate desde menino, freqüentava a praça e convivia com os estudantes. Na parte da manhã ele estava com o pessoal que estudava à tarde ou à noite. Depois do almoço ele conversava com quem estudava de manhã. Ou seja, sempre havia alguém para conversar com o João, que se sentia bastante “chegado” dos estudantes.

Era conversa de igual para igual, ainda mais que estudante não tem dinheiro e ele, como trabalhava, sempre tinha algum e, por isso, era convidado para ir neste ou naquele bar. Além do que, ele se achava um excelente malandro, enquanto que achava que os amigos eram otários, porque iam à escola. Ele apenas não percebeu que seus amigos, exatamente porque freqüentavam escolas, em pouco tempo mudavam sua vida e passavam a trabalhar em atividades melhores que o João, ganhando muito mais, é claro.

As visitas aos bares, onde era bem recebido enquanto tinha algum dinheiro, encaminharam-no ao vício do álcool.

Logo aqueles amigos afastaram-se dele, não só devido as constantes bebedeiras, mas porque já estavam com outras ocupações. Ele não entendia a razão, mas considerou que apenas ele estava certo e todos errados. Pudera, ele era malandro!

Para o João Bituca todo mundo era otário:

- Fulano é otário! Cicrano é otário! Beltrano é otário. O Bolinha é otário! – costumava dizer.

Mas Bolinha, fabricante e vendedor de mel, era seu único amigo. Tão amigo que na casa deste havia um quadro com uma fotografia dos dois.

Certo dia, conversando com uma pessoa que há tempos não via, pois não morava mais na cidade, “contou” que todo mundo da cidade era otário, que só tinha “trouxas” e que ele era “o bom”. Esse era o Cláudio do Timbio.

O Cláudio disse para o João:

- É mesmo, aqui só tem otários. Vou levar você comigo para Santos, vamos à praia e ver as mulheres mais lindas do Brasil. A mulherada de biquíni. Você vai deixar os “trouxas” de Tatuí com a boca aberta quando contar o que fará por lá!

- Ê, meu! Não tenho grana! - respondeu João.

- Não precisa de dinheiro. É tudo por minha conta. Você é meu amigo... pode deixar que eu pago o que precisar. - garantiu Cláudio.

- Ah, então vamos sim, estou cheio desta cidade que só tem otários – respondeu João.

E o Cláudio cumpriu o que prometeu. No dia seguinte tomaram um ônibus e foram a São Paulo. De lá pegaram outro para Santos, chegando à tarde desse mesmo dia. Estavam com fome, mas Cláudio foi logo avisando que iriam jantar em um restaurante chique, comer frutos do mar.

Santos é famosa pelos jardins da praia

Foram a um restaurante elegante à beira-mar. Nesse restaurante todos estavam com roupa social, até mesmo o Cláudio vestia-se adequadamente, mas o pobre João Bituca era uma figura destoante.

- João, você já comeu lagosta?

- Não! – respondeu.

- Então hoje você vai comer coisas que os otários de Tatuí nunca provaram. Lagosta, camarão, polvo, lula... tudo que quiser.
Lagosta, prato degustado pelo João Bituca

Cláudio chamou o garçom e não economizou. Pediu tudo do bom e do melhor, acompanhado de vinho importado.

Quando chegou o pedido, João nem sabia por onde começar, mesmo porque nem sabia como comer aquilo. Mas buscou encontrar um jeito: observou o que Cláudio fazia para comer, tentou, tentou e acabou comendo mesmo foi com as mãos!

A mesa dos dois estavam maravilhosa, não economizaram em nada

Comeram a valer. Repetiram o vinho duas vezes.

O Cláudio disse para o João:

- Vamos escolher uma sobremesa. Uma refeição completa não pode ficar sem sobremesa.

Chamou o garçom e pediu o menu para escolher.

Escolheu alguma coisa que disse gostar e deu o menu para o João escolher. Quando o João escolhia, o Cláudio disse que viu um conhecido passar na frente do restaurante e avisou ao João que iria chamar a tal pessoa para fazer companhia aos dois.

- Espera um instantinho aqui, João! Eu só vou chamar o meu amigo e já volto. Enquanto espera, peça a sobremesa.

Ah, João Bituca não se fez de rogado. Pediu, com auxílio do garçom, um sorvete especial, já que não entendia nada do menu.

O sorvete demorou um pouco para chegar, mas veio e o Cláudio ainda não havia voltado. João olhava insistentemente para a porta do restaurante, ansioso por ver o companheiro voltar.

Tomou o sorvete olhando para a porta.

Sua figura, destoante, começou a chamar a atenção do pessoal do restaurante. Os seguranças já estavam rodeando, de olho no João. Isto porque havia mais de meia hora que ele estava sozinho. Não tinha mais o que fazer por lá e olhava para a porta sem parar.

O garçom trouxe a conta e apresentou ao João. Ele nem mesmo entendeu direito o valor, porque não poderia imaginar que um jantar pudesse custar tudo aquilo: “Acho que erraram e tem um zero a mais!” – pensou.

Mas não havia erro algum. A conta era alta mesmo. Pudera, lagosta, camarão, lula, polvo, vinho do Porto, não são coisas comuns.

Uma hora inteira já se passara. João levantou-se para olhar fora do restaurante, ver se encontrava o Cláudio. Quando se levantou, os seguranças correram para seu lado.

Quis se aproximar da porta, mas foi abordado pelos seguranças, que ordenaram para ele ir até o caixa, pagar a conta.

João estava desesperado. Não tinha nem um cruzeiro no bolso e o Cláudio demorava demais para voltar!

Demorava e não voltou. O garçom, seguranças e maitre do restaurante já haviam fechado o caminho de saída para o João. Não dava para ele sair fora.

- O Cráudio já vórta pra pagá a conta! – repetia incessantemente.

Chamaram a polícia e levaram o João em um escritório nos fundos do restaurante. Em pouco tempo perceberam que estavam lidando com um otário que havia caído em um conto.

- Não vamos receber o dinheiro. A conta não será paga, porque você é um otário sem dinheiro! – disseram ao João – Mas não pense que vai sair desta com facilidade. Vai em cana!

João saiu algemado e conduzido para a viatura. Levaram para a cadeia e prenderam por 3 dias.

Se em Tatuí as celas ainda não eram superlotadas, em Santos eram terrívelmente lotadas

Quando soltaram, ainda ficaram com dó dele, fizeram uma “vaquinha” e arranjaram dinheiro para a passagem de volta até Tatuí. Sabiam que, se ele ficasse em Santos, dentro de poucos dias estaria de volta à cadeia, como vítima ou como autor de algum delito.

- Ô otário, vê se aprende agora! – aconselharam na saída.

Quando o João voltou em Tatuí todos já sabiam da história, porque o Cláudio logo depois de sair do restaurante já tomara o ônibus e sumiu de Santos. Contou para todo mundo a maldade que fizera ao pobre do João.

Mas quando se perguntava ao João o que tinha acontecido, ele desconversava e não contava para ninguém. Tentei arrancar dele o final desta história, o que aconteceu direito no restaurante e na cadeia, mas ele dava um jeito de desconversar e não contava. Não faz muito tempo que tentei pela última vez descobrir... poucos meses antes dele falecer. Mas que o que... não contou!

Faleceu há pouco tempo e ganhava a vida como vendedor de bilhetes. Era um vendedor chato e abusado: chegava perto de algum possível freguês e dizia:

- Viado! Viado!

Quando a pessoa, irritada, olhava imediatamente para seu lado, ele mostrava o bilhete do veado:

- Quer comprar o bilhete do viado?

Às vezes se aproximava de uma mulher e dizia:

- Vaca! Vaca!

Essa tal mulher, sentindo-se ultrajada, virava-se para o lado do João, que mostrava um bilhete e dizia:

- Quer comprar o bilhete da vaca?

Isto porque ele, em sua concepção, não era otário... os outros é que eram... achava-se um grande malandro.

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