terça-feira, novembro 01, 2005

05) Viajando de Thornycroft

Na década de 1950 as estradas brasileiras eram praticamente todas sem pavimentação, estradas apenas pedregulhadas. Isso ainda era privilégio dos principais caminhos. Qualquer viagem, por menor que fosse, era uma aventura: não dava pra ter certeza de sua duração e nem mesmo se dava pra chegar no destino, pois as pontes, todas de madeira, muitas vezes caíam, interrompendo o trânsito durante dias.

Uma viagem de Tatuí até o norte do Paraná, que estava sendo desbravado nessa época, não podia ser diferente: uma aventura de cerca de 10 dias de duração, considerando a ida e volta. A coisa era uma sucessão de socos, lama, areião, poeira, socos, chuva, atravessar rios sem pontes, pelo meio da água ou em balsas.

Com estas estradas maravilhosas, os Thornycrofts da serraria de vovô Tonico eram um sucesso. Com sua espantosa velocidade (o mais rápido deles, o Trident, chegava a impressionantes 60 km/hora enquanto que o Trust não passava de 55 km/h) viajavam horas e horas sem parar, enfrentando poeira, chuva, buracos, água, lama, areia...
Os caminhões eram verdes e no capô estava escrito

“Serraria São Francisco Ltda.”
T A T U H Y

Esta foto mostra um Thornycroft Trident como vinha para o Brasil, montado mas sem cabine, que era feita aqui.


Viajavam em duplas. Iam ao norte do Paraná pra buscar madeira. Os dois Thornycrofts: o Trident e o Trust (estes eram seus modelos) podem ser vistos hoje no Posto 3 Irmãos do Manivela. Ele reformou os dois e estão se apresentando com sucesso em todos os encontros de veículos antigos.

Uma coisa interessante dessa época é que quase não havia caminhão movido a óleo diesel. Era tudo a gasolina. Com isto, de Tatuí até o norte do Paraná não tinha como abastecer. Assim, de vez em quando um dos caminhões, geralmente o Trident, que era o modelo menor, ia a São Paulo comprar alguns tambores de óleo diesel. Cada viagem o caminhão tinha que sair com combustível para a viagem de ida e de volta. Não tinha como abastecer no caminho.
Hoje os dois Thornycrofts estão pintados de vermelho.

Também os lugares para comer eram poucos em toda extensão do caminho. O que ajudava é que as estradas não se desviavam das cidades, como acontece hoje. A estrada passava por dentro de Itapetininga, de Angatuba, Piraju, etc. e tal. Mas haviam trechos quase sem cidades e sem restaurantes.

Os motoristas dos caminhões eram: meu tio José Luciano e, às vezes, meu pai ou o Renato Moreira. Cada um viajava com um ajudante, geralmente o Adolfo Lencione, o Américo, português da Ponta da Régua... As coisas que os uniam eram o ânimo de viajar por caminhos inóspitos e os restaurantes que encontravam pelo caminho.

Em uma dessas viagens, descobriram um restaurante à beira da estrada que cobrava um valor fixo pela refeição e permitia que repetissem a vontade. Mais ou menos como hoje funciona o sistema de rodízio ou o self-service...

E o tal restaurante servia uma refeição muito boa. Só que a fome de José Luciano, Renato Moreira, Toninho Luciano, Adolfo Lencione e do Américo não eram saciadas com muita facilidade.

Repetiam inúmeras vezes. Para piorar a coisa, meu tio não tomava nada mais que água fresca... Sem bebida o lucro do restaurante ficava reduzido... e só água de poço, pois nem havia água mineral pra vender... Seu apelido de Zé Boi não era em vão, ele fazia por merecer!!!

- Mais arroz! Mais feijão! Mais carne! Mais isto e mais aquilo! E mais uma jarra de água fresca!!!

Foram uma, duas, três vezes no restaurante em algumas viagens, na ida e na volta. Deixavam de comer em outros restaurantes para comer lá. Aproveitavam pra ir com bastante fome e descontar tudo por lá, pois o preço era fixo.

Pois bem, em uma das viagens deixaram de comer lá pelas 10 horas da manhã quando passaram por uma cidadezinha, imaginando que chegariam ao tal restaurante perto das 2 da tarde. E quando chegassem iriam ”tirar a barriga da miséria”, literalmente.

Chegaram lá e encontraram o restaurante fechado. Ficaram com uma fome danada, pois o próximo restaurante estava a mais de 2 horas dali. Na volta, deixaram novamente para comer lá, imaginando que haviam chegado tarde naquele outro dia.

Mas encontraram o restaurante fechado. Estranharam, como na primeira vez, que saía fumaça da chaminé e tinha um Ford e um Chevrolet parados por lá. Bateram à porta, mas ninguém abriu. Foram embora todos em jejum.

Na viagem seguinte tudo aconteceu da mesma forma, mas na volta descobriram o mistério: quando o dono do restaurante escutava o barulho inconfundível dos Thornycrofts, ruído de motor diesel com escapamento sem silenciador, corria pra fechar o restaurante.

O restaurante estava localizado em um morro, permitindo que de lá fosse possível observar o movimento da estrada. E com o seu barulho inconfundível e os únicos camihões dessa marca existentes na região, um Thornycroft não passava despercebido.

O sistema do restaurante: pague e coma a vontade poderia dar certo com todos os outros clientes, mas meu tio, meu pai, o Renato, o Adolfo e o Américo comiam tanto que davam um prejuízo tremendo, fazendo com que o dono fechasse o restaurante e ficasse quietinho lá dentro, pedindo para os outros fregueses que por lá estivessem - pelo amor de Deus - que também ficassem quietos, até o o ruído dos Thornycrofts desaparecer ao longe...
Nesta foto, está o Thornycroft Trust.

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