segunda-feira, dezembro 12, 2005

16) Aventuras fluminenses e marítimas

As coisas não andavam muito bem para meus amigos Jaime e José "Cabreira” lá pelos idos de 1970. Os dois andavam mais “apertados” que porca com contraporca. Nessa época tanto um quanto outro estava trabalhando no ramo metalúrgico: o Cabreira era sócio de uma pequena serralheria e o Jaime era soldador em uma fábrica de carrocerias. Muito trabalho e pouco dinheiro.

Mas era a época do “milagre brasileiro” e a economia nacional andava a passos largos. Havia emprego para todos em todas as áreas. Como as coisas estavam momentaneamente ruins para os dois amigos, Jaime teve uma idéia, que repassou ao Cabreira: Trabalhar no Rio de Janeiro! Soube por amigos que tinha trabalho para soldadores em algumas construções importantes no Estado do Rio de Janeiro.

Arrumaram um pouco de dinheiro que, juntando com a fé em encontrar trabalho, parecia bastante, suficiente para a viagem pretendida. Alguns dias de planejamento e lá se foram os dois ao Rio de Janeiro.

Puxa, porque não haveria de ter trabalho para ambos, uns profissionais gabaritados em soldas. Jaime costumava soldar cabos de enxada, bicos de arado e até as ferragens de carroceria de caminhão. Serviço especializado, claro. Sua experiência em oficina de ferreiro lá de Cesário Lange não poderia ser desperdiçada. Já o Cabreira tinha experiência em área diferente, serralheria. Remendava vitrôs. Até mesmo se aventurava em lanternagem de veículos.

Assim, os dois especialistas da solda, metalúrgicos de gabarito, entusiasmados com as múltiplas possibilidades que a vida lhes abria, seguiram viagem conversando animadamente sobre o futuro, principalmente nas coisas que iriam adquirir com seu trabalho profissional.

Algumas horas de viagem e chegaram ao destino: obras na Baía de Sepetiba, provavelmente no início da construção do complexo portuário de Sepetiba, área metropolitana da cidade do Rio de Janeiro. Só que eles chegaram quando finalizavam as obras. O trabalho de soldador terminara.

Foto atual do Porto de Sepetiba

No momento em que o desânimo ia abatendo os dois valentes obreiros da metalurgia, a pessoa que os atendia falou que estava para começar, em Angra dos Reis, as obras para a primeira usina atômica brasileira. O início ainda demorava um pouquinho, mas eles poderiam encontrar trabalho provisoriamente nos estaleiros Velrome, que estava construindo diversos superpetroleiros, navios imensos para transportar petróleo da Arábia ao Brasil. Os navios eram construídos em aço e, portanto, precisavam dos préstimos de profissionais competentes na área de soldagem. Prática? Porque se preocupar, que poderia existir de tão diferente entre soldar casco de navio e cabos de enxada? Ou de remendar vitrôs de banheiros? Praticamente nada!

Dirigiram-se para Angra dos Reis ainda mais animados que antes, pois agora tinham não apenas uma, mas duas possibilidades de emprego: construir navios ou construir usinas nucleares.

Chegaram em Angra no dia seguinte, indo logo ao estaleiro. Tinham pressa em começar a trabalhar, mesmo porque o dinheiro estava no fim, bem no final. Quando iam ao estaleiro, o Cabreira perguntou onde seria construída a usina atômica. Logicamente que seus contatos eram sempre feitos em bares. Já tinham passado por mais de uma dezena deles e, como sempre foi um sujeito civilizado, procurava juntar o útil ao agradável, experimentando a pinga de cada região que passava. Isto ainda é seu costume, pois nunca deixou de provar as delicias alcoólicas de cada cidade que passou em toda sua vida. Só um trago, mas experimenta.

- Logo mais adiante, na praia de Itaoca! Alguém respondia sobre a futura localização da usina.

O Cabreira, erudito, começou a discutir com pessoas no bar os significados das palavras:

- Temos, perto de Tatuí, onde moramos, uma cidade chamada Itapetininga! “Ita”, em tupi-guarani, significa “pedra”. - Assim, filosofou, a usina deve estar sendo construída em um lugar bastante seguro! Seus conhecimentos em tupi-guarani não lhe permitiram traduzir adequadamente a palavra.

Só que os planejadores do governo talvez nem tivessem pensado em “interpretar” o significado da palavra “itaoca” quando decidiram construir lá uma usina nuclear. Itaoca, em tupi-guarani, significa “pedra podre”. O lugar escolhido para uma edificação de risco elevadíssimo foi reprovado pelos indígenas brasileiros: aquele lugar tinha um chão ruim para construir uma aldeia, com toda certeza... E para construir usina atômica? Aiaiai, será que o Brasil ainda vai dar certo?

Em busca de um futuro luminoso, o Jaime e o Cabreira chegam ao estaleiro e logo ficaram sabendo que teria um teste para saber se estariam aptos para o serviço. Se passassem no teste estariam automaticamente contratados.

Só que o tal teste aconteceria dentro de três dias. E aí? Como fazer para comer nestes dias, pois do dinheiro inicial sobraram apenas uns trocos? O encarregado do estaleiro, homem vivido, acabou percebendo o perereco deles e arrumou duas senhas para almoço e jantar em nome de duas pessoas que estavam ausentes naquela semana. João e Antonio da Silva, ou coisa semelhante.

Para dormir o encarregado arrumou um alojamento com mais uns trinta peões. Mas fazer o quê? Tinham que aceitar, visto que depois do teste praticamente estariam ricos!

A rotina dos dias de espera foi bárbara! Praia, bar, conhaque, pinga (mesmo sem dinheiro sempre há quem pague umas e outras para um cara agradável como o Cabreira). O Jaime nem precisava se esforçar para conversar, que o amigo ia “abrindo porteiras” nos relacionamentos à base de etílicos.

Depois de três dias de farra, chegou a hora do tal teste. Quando o Cabreira viu que tinha uma roupa especial para vestir, olhou com atenção e percebeu que nem mesmo aquela vestimenta ele conseguiria lidar corretamente, que dirá então do teste... uma solda que seria submetida ao raio X para buscar imperfeições!!!

Isso, porém, não abateu o Jaime, que ainda estava confiante. Que esse tal de raio X entende de soldas? Os cabos de enxada que soldou nunca tiveram problemas ou geraram reclamações...

Assim, depois de um esforço e de bastante ajuda externa, conseguiu “entrar dentro do equipamento”, vestindo aquela proteção. Foi fazer o teste, que consistia em soldar chapas do casco do navio, com perfeição tal que não permitisse qualquer vazamento.

O resultado? Ainda bem que foi apenas um teste, pois se tivesse soldado o casco de um navio, o naufrágio do Titanic seria fichinha perto dos resultados de um navio “emendado” pelo Jaime. Quase apanharam do encarregado, pelo tempo que ele perdeu atendendo aos dois.

O que lhes restava era voltar a Tatuí. Mas voltar como, se o dinheiro havia acabado? Perguntaram em seus pontos de informações (leia-se bares, botequins e botecos) e souberam que a Marinha tinha uma linha de barco que atendia aos ilhéus da região a preços extremamente baratos.

Perguntaram como funcionava esse transporte e outras particularidades. Resolveram ir embora de navio.

Quando chegou o horário da partida, dirigiram-se para o porto, compraram as passagens e aguardaram a hora de zarpar.

Antes de entrar no barco, o Cabreira foi tomar mais um conhaque, para criar coragem. Cada desculpa que arrumam para beber... com a quantidade que já havia bebido naquele dia, provavelmente teria coragem para enfrentar até o coisa-ruim!!!

E, assim, foram ao cais aguardar o navio. Era um cais flutuante, subia e descia, subia e descia, subia e descia e o Jaime foi ficando enjoado. Chegou o navio e os dois embarcaram rapidamente. Enquanto o barco partia, o Cabreira já foi perguntando a um marinheiro onde ficava o bar. O marinheiro ficou bravo e respondeu rispidamente que aquele era um navio da Marinha de Guerra do Brasil e que não servia bebida. Provavelmente só não servia para passageiros, pois o “bafo” do marinheiro afugentaria até aos monstros marinhos temidos pelos primeiros navegantes...

E o navio subia e descia, subia e descia, subia e descia enquanto o litoral desaparecia. Sobe e desce e o Jaime debruçou-se na murada para devolver à natureza tudo que tinha comido nos últimos dias. Sobe e desce, sobe e desce e chegam a uma ilha. Jogaram âncora e logo surgiram uns pequenos botes, com caiçaras e cabras, galinhas, pacotes, etc. e tal. Em cada ilhota a coisa era semelhante: caiçaras, cabritos, galinhas, pacotes... assim eram feito o abastecimento dos ilhéus e o comércio da região.

Mas quem viu isso tudo foi apenas o Cabreira, já que a “ocupação” do Jaime continuava na murada... parecia que não tinha mais nada, mas sempre “aparecia” alguma novidade... Éca!

Já era noite quando chegaram ao destino: Parati. Olhando do mar a cidadezinha era insignificante, pequena, quase sem iluminação.

O cais de Parati, ao contrário de Angra dos Reis, era fixo. A maré tinha baixado e o cais estava “lá em cima”... Como “descer” do navio se teriam de subir?

Os marinheiros estavam acostumados com isso. Formaram uma corrente de pessoas, dando um giro e praticamente jogam o freguês sobre o cais. Assim fizeram com todos. Logo estavam os dois olhando para a cidade lá do porto.

Se hoje Parati é uma espécie de museu, remanescente do Brasil Colônia, naquele tempo, década de 70, não tinha nada, pois não havia sido “descoberta” pelos turistas. Era, com toda certeza, um fim-de-mundo.

O Jaime, que havia passado horas terríveis no mar, usou de toda sua sensibilidade para descrever o que via:

- Acho que agora “cheguemo” no inferno!

Foram até o centro da cidade, procurar onde comer e dormir. Só no dia seguinte teriam como sair de lá, uma “jardineira” horrorosa que ia até São Luís do Paraitinga. No dia seguinte chegaram em São Luís. Chegou ao fim, nesse mesmo momento, o restinho de dinheiro que tinham. O recurso foi vender por uns 20 cruzeiros o relógio do Cabreira, que valia mais de 100!

Com o dinheiro apurado na venda do relógio conseguiram ir até São Paulo. Na rodoviária, que nessa ocasião era a mesma para Tatuí ou para o Rio de Janeiro, foram procurar algum conhecido que lhes emprestassem dinheiro para a passagem.

Foto da área interna da antiga Estação Rodoviária de São Paulo

O Cabreira encontrou uma pessoa que lhe arrumou o dinheiro e comprou duas passagens: uma no ônibus de Tatuí e outra no ônibus de Itapetininga.

- Porque isso? perguntou o Jaime. - Ônibus separados?

- Por que eu não agüento ficar nem mais um minuto com você! Maroteou o Cabreira.

Hoje, quando lembram dos acontecimentos, riem bastante, mas nesse momento, o sonho de um futuro brilhante acabava de desaparecer... Todos os planos sumiram como fumaça. Um não agüentava mais o outro...

Mas o futuro tinha outros planos para ambos. São profissionais em outras áreas, completamente diferentes da metalurgia: um é corretor e outro advogado. A experiência fluminense serve para ficar no álbum de recordações de cada um, para lembrar de outros tempos que, se o dinheiro era curto, a vontade de crescer era maior.

Nenhum comentário: